Ouça “Vestígios”, disco do Criaturas

Enquanto o mundo brincava o carnaval de 2020 as Criaturas fizeram seu antecipado isolamento social, por cinco dias, no Nico’s Studio em Curitba. Estavam absolutamente infectados pela magia das músicas e pela intensidade do amor que existia naquele pequeno grupo de criadores.

Foram dois meses de trabalho, com a produção musical, atenta e artesanal, de Bruno Sguissardi, antigo amigo músico de “outrosmodos” que se revelou um produtor sensível e capaz de extrair o equilíbrio necessário em cada canção. Estávamos afinados e melhoramos ainda mais com a entrada em cena do fino e agradável Francisco Dessalvo – “Frankie Lennon, the man of many ways, many times” – na engenharia de som. Nossa dupla de pilotos: brasil e argentina no melhor da colaboração pela música.

São 5 composições originais que nos deram 10 músicas, em 4 idiomas diferentes: o inglês, o português, o “onomatopéico iorubá” e o instrumental.

SUNDAY, uma das pérolas que revela o que de mais doce e encantador existe nas composições de Xanda Lemos. Um assobio quase infantil. A dor de um amor cansado, que está se apagando. Um quero mais. Um tom em “blue” que no final do dia transforma qualquer pôr do sol num potente amanhecer.

VESTÍGIOS é profética. Desde o início havia algo naquela letra que parecia significativa, marcante. Só não sabíamos do quê?! O céu começava a nublar. O trânsito iria parar. E ficaríamos todos com saudade de um mundo que não volta mais. Aos poucos foi se enraizando em quem a ouvia e virou a marca do álbum. A composição de Yan Lemos “é a música do Sonhos”, dizem meus filhos.

OMALOLA é uma viagem sonora captada por Xanda e Caetano que contaminou o ambiente. A emocionante história de uma enfermeira refugiada da Nigéria nos Estados Unidos, uma canção de ninar e o batimento cardíaco de uma criança recém-nascida. Os sinais onomatopéicos que no meu tradutor do Google são reconhecidos como japonês, se combinam com o acréscimo de dois músicos extraordinários na percussão e nas flautas, num mix que nos vacina contra qualquer preconceito musical.

BETTER TIMES é um docinho de coco. Inspirada nos grupos de Shag que Xanda conheceu na Carolina do Norte, a música é a essência do sentimento mais primário das baladinhas pré rock’n roll dos anos 50, do tempo em que as pedras que rolavam ainda eram feitas de algodão. Há muitas lembranças que voam a cabeça quando se ouve essa coisinha.

RÉQUIEM, a expressão de toda a criatividade das Criaturas. Foi com essa pegada psicodélica, mutante, extravasante que Xanda Lemos, Bruno e Caetano Zagonel se revelaram no início dos anos 2000, com a narrativa feminina, imagens e devaneios que nos entregam tudo o que o rock promete. Réquiem é uma música de arrancar os cabelos e dançar lavando roupa no box.

Vestígios é um disco de raridades.

Todas as músicas ganharam suas versões instrumentais, como um Lado B de Vinil, e são a chance de uma nova experiência musical que revela detalhes sonoros quase imperceptíveis com a voz se espalhando pelo ambiente. Cada pequeno som, timbres e contrapontos que ficam mais vivos e alteram para sempre a percepção da música após essa exposição.

É um momento mágico em que amigos reunidos – agora com Yan e Yuri Lemos – conseguem extrair de si o máximo do amor musical, conseguem esquecer de um mundo que em breve seria varrido e apenas com seus sonhos criam algo totalmente novo. Sons e ritmos que servirão como lembrança inapagável de nosso tempo. É para se ouvir, quieto, ao som da nossa respiração, sem máscaras. Baterias, baixos, violões, guitarras, vozes, sinos, teclados, pianos, berimbaus, flautas, percussão… compõem o mosaico que traz a contribuição de cada um que estava lá… e deixa os rastros de quem fomos, em um mundo que não volta mais. Agora vou ouvir, mais uma vez!

Marcelo Crivano / VOLTS

Redação 89: